28/10/2025 às 17:41 Psicanálise

O mal-estar que não cessa: da renúncia pulsional ao imperativo de gozo

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Por Karine Riboli |

Desde Freud, compreendemos que o mal-estar é inerente à condição humana. Em O mal-estar na civilização (1930), ele nos mostra que a cultura, ao exigir a renúncia pulsional em nome da vida em comum, instala um sofrimento estrutural. A promessa civilizatória de segurança e progresso cobra um preço: o da limitação do gozo. Essa renúncia, necessária à manutenção do laço social, funda um paradoxo, quanto mais a civilização avança, mais sofisticadas se tornam as formas de sofrimento que ela produz.

Se, para Freud, o mal-estar é efeito da repressão e do sacrifício pulsional que sustentam a vida coletiva, em Lacan há uma torção significativa. O que antes era interdição, hoje se apresenta como imperativo. O sujeito contemporâneo já não sofre por não poder gozar, mas por ser convocado a fazê-lo. O discurso dominante não reprime o gozo, ele o exige… “Goza!!”, ordena sob as máscaras da produtividade, do autocuidado, da performance e do consumo.

Lacan antecipa essa mutação ao formular o discurso do capitalista, um modo de laço que tenta abolir a falta, prometendo satisfação ilimitada. Nesse discurso (que é considerado um deslizamento do discurso do mestre), o sujeito é empurrado a buscar incessantemente um objeto que repare o vazio: o corpo ideal, o sucesso, o prazer, a visibilidade… Mas o desejo, por estrutura, é desejo de falta; e o objeto, por mais sedutor, nunca cumpre a promessa de completude. O resultado é o retorno do mal-estar sob novas roupagens: ansiedade, depressão, compulsão, burnout.

O sofrimento atual não nasce da interdição, mas do excesso. A subjetividade contemporânea está saturada de imagens, de demandas, de ideais. O mal-estar já não se expressa como culpa pelo desejo proibido, mas como exaustão diante da impossibilidade de corresponder ao ideal de plenitude que o discurso capitalista sustenta. Vivemos em um tempo em que é preciso ser produtivo, feliz e saudável, o tempo todo. E a incapacidade de atender a esse ideal produz um sentimento difuso de insuficiência, fracasso e culpa.

Nesse cenário, o sintoma adquire uma nova função. Ele se torna, muitas vezes, a única forma de resistência possível a uma ordem que não tolera o limite nem a falta. A angústia, a apatia e o cansaço podem ser lidos, portanto, como modos de recusa, tentativas de o sujeito sustentar algo de si diante de um discurso que o reduz a consumidor, de objetos e de si mesmo.

O mal-estar, então, não é um defeito da civilização, mas seu efeito estrutural. E se hoje ele se apresenta em novas formas, é porque continua fiel à sua lógica de indicar que há algo no humano que escapa à gestão, ao cálculo e à promessa de bem-estar total.

O mal-estar contemporâneo não está fora de nós, nem é apenas efeito de um sistema ou de uma época. Ele encarna em nossos modos de desejar, nas formas como consentimos à exigência de sermos mais, melhores, plenos. O sujeito, hoje, não sofre porque lhe falta algo, sofre porque não pode faltar. Talvez, a atitude que nos cabe seja de não tentar, a todo custo, eliminar o mal-estar, mas consentir em habitá-lo, reconhecendo aí o limite que nos faz humanos.

Referências

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização e outros textos (1930-1936). Companhia das Letras, 2010.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

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28 Out 2025

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