07/08/2025 às 20:15 Psicanálise

O sofrimento moderno como sintoma de uma sociedade que consome tudo — até o amor

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6min de leitura

Por Vaneska Cavalcante |

Na sociedade atual, ouvimos frequentemente sobre a liberdade de escolha e as infinitas possibilidades que a modernidade nos oferece. No entanto, por trás dessa aparente liberdade, esconde-se uma complexa teia de exigências do mercado que permeia cada faceta de nossas vidas. Será que essa lógica nos leva à verdadeira satisfação ou a um sofrimento cada vez mais "líquido" e constante?

Neste artigo, vamos refletir sobre como as relações humanas se moldam às demandas do consumo e da produção, utilizando as instigantes ideias de pensadores como Zygmunt Bauman, Dany-Robert Dufour e Sigmund Freud. A proposta é compreender como o mercado remodelou nossas relações, nossos lares, nossos corpos e até nossas formas de amar — e como isso revela um sofrimento que não é apenas pessoal, mas coletivo.

Este texto é uma continuidade reflexiva do artigo "Liberdade, Consumo e a Ilusão da Escolha", publicado anteriormente neste site. Enquanto naquele abordamos como o consumo incide sobre o corpo e o desejo, aqui exploramos como ele molda afetos, vínculos e subjetividades.

Relações humanas como mercadoria: o sofrimento na era do “ter”

Zygmunt Bauman, teórico da “modernidade líquida”, alerta que hoje a subjetividade do sujeito concentra-se num esforço constante para se tornar e permanecer uma mercadoria vendável. Em vez de valorizar o ser, somos impelidos a focar no ter — possuir bens, experiências e até características que nos tornem desejáveis e competitivos no mercado social.

Essa lógica gera a fragilidade dos laços humanos. As relações se tornam descartáveis, instáveis, moldadas por conveniência e performance. Bauman diz que nos conectamos e desconectamos com a mesma facilidade com que trocamos de aplicativo — sem vínculo, sem profundidade, sem responsabilidade afetiva.

Ao mesmo tempo, vivemos a contradição da globalização: em plena era da hiperconexão, cresce o isolamento. A tecnologia prometeu aproximação, mas muitas vezes distancia. As redes sociais permitem um “clique” de vínculo, mas também de afastamento. Como consequência, a empatia se esvazia e os vínculos reais tornam-se ameaçadores.

A promessa do individualismo e a destruição da autonomia

Dufour, ao pensar a sociedade pós-moderna, propõe que nunca alcançamos o verdadeiro individualismo. Fomos, ao contrário, destruídos pela vontade de sermos únicos — e por isso nos tornamos mais egocentrados, inseguros e dependentes da validação alheia. Buscamos singularidade, mas somos padronizados pelo consumo.

Essa condição — de desejar ser autêntico, mas se modelar por tendências — causa o que Freud chamou de conflito entre o eu ideal e o ideal do eu. A tensão entre o que gostaríamos de ser e aquilo que acreditamos que os outros esperam que sejamos alimenta frustração, angústia e culpa.

A busca incessante por prazer e a armadilha do consumo

Freud já dizia que somos movidos pelo princípio do prazer — a busca pela satisfação e a fuga do desprazer. Mas na sociedade de consumo, esse princípio é cooptado: o prazer é induzido e constantemente adiado. Compramos não para satisfazer, mas para continuar desejando. O prazer pleno seria, na verdade, um colapso para o mercado.

A insatisfação se torna estratégia de manutenção da lógica do consumo. Como aponta o texto anterior: “a satisfação plena do cliente nunca é alcançada, pois, se fosse, o mercado não teria mais o que oferecer”. E assim também ocorre com a subjetividade: reinventar-se constantemente se torna obrigação. Quem não se adapta, desaparece.

Família líquida: múltiplas formações, vínculos frágeis

A família, enquanto instituição, também foi atravessada por essa lógica. Dufour observa que a coexistência de múltiplas gerações sob o mesmo teto foi desarticulada. As novas formações familiares — muitas vezes monoparentais, fragmentadas ou recombinadas — espelham a lógica da escolha individual, mas perdem, muitas vezes, a função simbólica de mediação do desejo.

Nas palavras de Freud, a família é o primeiro lugar onde aprendemos a lidar com a castração simbólica — o limite, a espera, o outro como alteridade. Mas se essa estrutura se esvazia, o sujeito não é mais iniciado no laço social pela via do desejo e da renúncia, e sim da demanda e da satisfação imediata.

O trabalho e o corpo como vitrines de desempenho

Outro campo colonizado pelo mercado é o trabalho. Bauman descreve o “mercado de trabalho” como mais uma vitrine onde vendemos nossa força, tempo e imagem. O trabalhador ideal precisa estar sempre motivado, produtivo, reinventado — nunca plenamente satisfeito.

Se não se adaptar às exigências da empresa, ele é descartado, reposicionado na “prateleira de obsoletos”. E assim como no consumo de objetos, trabalhadores também são substituíveis. O que importa não é o sujeito, mas a performance.

A consequência psíquica disso é a exaustão generalizada, o burnout e a insegurança crônica. A ansiedade de não ser suficiente. A depressão de não encontrar sentido. E o medo, silencioso, de tornar-se irrelevante.

Gênero, desejo e a mercantilização da identidade

Dufour discute a ascensão do “gênero” como escolha em detrimento da “diferença sexual” como dado simbólico. Em um mundo onde tudo pode ser comprado e escolhido, inclusive quem se é, o sexo se torna um dado opressor, e o gênero, uma bandeira de liberdade.

Mas essa escolha também é atravessada pela lógica do mercado. O corpo, o gênero e o desejo viram expressões customizáveis, rentáveis, tematizadas por influenciadores, campanhas publicitárias e dispositivos legais. Ao invés de acolher a alteridade do outro, passamos a demandar que o outro nos confirme. O outro vira espelho, nunca diferença.

Freud, ao pensar o Édipo, mostrou que é justamente a diferença (entre gerações, entre sexos) que sustenta a ordem simbólica. A negação dessas diferenças, em nome de uma liberdade total, nos deixa sem estrutura. E o que resta é a angústia — o sinal de que algo do desejo não pode ser satisfeito.

A angústia como sintoma de uma liberdade esvaziada

A liberdade moderna tem um preço oculto: a responsabilidade sobre o que se deseja. Mas como desejar em um mundo que coloniza até o desejo?

A modernidade líquida transforma tudo em produto: amor, vocação, sexo, futuro. E como consumidores perfeitos, nos tornamos ansiosos e inseguros. Temos medo de escolher e errar. Vivemos o hoje intensamente porque o futuro parece incerto. Buscamos prazer imediato, alívio rápido, distração constante.

É aí que a promessa da liberdade se converte em sofrimento. O gozo se torna exigência. A identidade, performance. A escolha, angústia. E o amor, mercadoria.

Resgatar o “ser” na era do consumo do amor

A lógica do mercado penetrou nas camadas mais íntimas da vida: nossos laços, nossos afetos, nossa identidade. E é justamente por isso que o sofrimento contemporâneo não é apenas individual — é coletivo, estrutural, sintomático.

Como dizia Freud, parte do sofrimento humano é inevitável, pois advém da civilização. Mas o que vemos hoje é uma mutação desse sofrimento: ele é negado, disfarçado e transformado em mercadoria. A dor é estetizada, a angústia é medicada, a solidão é mascarada por conexões digitais.

Mas talvez, ao reconhecer esse jogo, possamos criar brechas. Pequenos desvios. Espaços de resistência onde o valor não seja determinado pelo que se pode vender, mas pelo que se pode compartilhar.

E você? Qual tem sido o seu preço para continuar existindo nessa sociedade que consome tudo — até o amor?

Bibliografia:

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

DUFOUR, Dany-Robert. O Divino Mercado: a revolução cultural liberal. Rio de Janeiro: N-1 Edições, 2009.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização (1930). Obras Completas, vol. XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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