23/06/2025 às 17:26 Clínica Contemporânea Psicanálise

Validação social, desejo e a intolerância ao olhar que não confirma

49
4min de leitura

Por Karine Riboli |

Na era da performance, o olhar do outro tornou-se mais que um espelho: tornou-se um tribunal. E quando ele não valida, parece que algo permanece ali, rondando… incomoda mais do que gostaríamos de admitir, né?

Mas o que está em jogo quando a ausência de validação nos fere a ponto de transformarmos o outro em ameaça?

O modo de pensar contemporâneo se não me valida, me persegue,  aponta para uma lógica emocional que tem se tornado cada vez mais comum: a de que, se o outro não reconhece minha expressão, meu discurso ou meu lugar, então ele está contra mim.

Esse tipo de leitura revela uma relação fragilizada com o próprio desejo e com a alteridade. Não se trata de agressão direta, mas daquilo que a ausência do reconhecimento mobiliza dentro de quem sente. E é justamente aí que a psicanálise pode lançar luz sobre o que escapa às explicações óbvias.

Validação: desejo de ser ou medo de não-ser?

A psicanálise, desde seus fundamentos, sustenta que o Eu emerge em relação ao outro. O olhar, a presença e o desejo do outro são operadores essenciais na constituição do psiquismo, primeiro como fonte de prazer, depois como espelho. Isso nos remete à perspectiva psicogenética de Henri Wallon, que compreende o sujeito como resultado da fricção entre o biológico e o social. (link para o artigo completo). O que começa como uma necessidade de sobrevivência passa a ser, com o tempo, necessidade de reconhecimento.

É legítimo desejar ser visto. O problema começa quando o desejo de ser visto é tão intenso que transforma qualquer não-validação em perseguição.

Lacan, ao afirmar que “o desejo do homem é o desejo do Outro” (Seminário 11, 1964, p.229), nos indica que o desejo não nasce em nós, mas se estrutura a partir do desejo que o Outro nos endereça, ou que supomos que ele nos endereça. Quando esse desejo do Outro se torna nossa única referência, entramos no terreno da alienação: o sujeito se vê forçado a sustentar um eu ainda frágil, tentando existir na medida em que é desejado ou reconhecido por esse Outro e não na medida em que deseja.

É nesse ponto que o não-reconhecimento, que poderia ser apenas diferença ou silêncio, passa a ser vivido como rejeição, abandono, ou mesmo ataque. A ausência de validação desorganiza, não por si só, mas porque toca o núcleo ainda mal costurado da constituição do eu.

O outro que não confirma: ameaça ou libertação?

É comum ouvirmos em análise: “me senti invisível”, “ele não me viu”, “ela não me apoiou”. Por trás dessas falas, muitas vezes, não está apenas a dor da rejeição, mas uma estrutura mais profunda de dependência emocional com relação à aprovação alheia.

Ferenczi, ao investigar o trauma e os vínculos afetivos precoces, mostra como o sujeito muitas vezes é levado a se moldar ao desejo do outro para garantir o afeto e a permanência no laço (Adestramento de um cavalo selvagem, 1928, p.17). Essa adaptação precoce gera um funcionamento em que ser aceito é mais importante do que ser si mesmo.

O resultado? Uma existência pautada na expectativa do outro e muitas vezes, intolerância crescente ao desacordo, à crítica ou mesmo à neutralidade.

Quando o outro não valida, ele não cumpre o roteiro que escrevemos para sermos aceitos. E por isso, se torna um risco. Um espelho que não reflete o que gostaríamos de ver.

Mas talvez esse olhar que escapa seja justamente o que convoca o sujeito à travessia. A travessia do desejo que não precisa mais ser confirmado para existir.

Validação como sintoma contemporâneo

A necessidade de validação não é nova, mas o modo como ela tem ocupado o centro da experiência subjetiva é um fenômeno contemporâneo.

Likes, seguidores, palmas e frases prontas oferecem alívios rápidos, mas não sustentam a existência. A lógica da aprovação virou notícia (como mostra esta reportagem), que aponta como a busca pela aceitação nas redes impacta nossa saúde emocional.

Na clínica, escutamos os efeitos do vazio que se abre quando a validação externa falha e o sujeito se depara com um desconhecido em si mesmo. Um vazio que não é necessariamente patológico, mas constitutivo. E é dessa falta que nasce o desejo.

É nesse silêncio do outro que às vezes surge um espaço incômodo, mas fértil, para que o sujeito se escute. Um espaço onde ele deixa, pouco a pouco, de pedir permissão para ser. E começa a se voltar para o que quer, o que sente, o que incomoda mesmo que isso não agrade, mesmo que isso transborde o que o outro esperava ver. 

Entre a perseguição e a construção de si

Nem todo olhar que não valida persegue. Às vezes, ele apenas se recusa a se submeter ao que projetamos como ideal. E tudo bem!

A análise pessoal não é um lugar de confirmação. É um espaço onde o sujeito pode sustentar sua fala, inclusive quando ela tropeça, quando ela não agrada, quando ela entra em conflito. É nessa escuta que não busca aplacar o mal-estar, mas compreendê-lo, que algo da verdade pode emergir.

No fim das contas, talvez o maior gesto de liberdade seja esse: deixar de perseguir quem não nos valida e começar a construir uma relação mais honesta com o nosso próprio desejo.

E você, já se sentiu ameaçado por um olhar que não confirma quem você é?

Referências:

FREUD, Sigmund. Freud (1914-1916) - Obras completas volume 12: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos; tradução e notas Paulo César de Souza. — São Paulo : Companhia das Letras, 2010.

Lacan, Jacques O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964) - 2ª edição - Rio de Janeiro Editora: Zahar;, 2008

FERENCZI, Sándor. Adestramento de um cavalo selvagem. Psicanálise II. Tradução de Álvaro Cabral; revisão técnica e da tradução de Claudia Berliner. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. 17. (Obras Completas de Sándor Ferenczi; v. 2).

Conheça mais sobre a Karine em seu site www.clinicariboli.com.br e Instagram @psikarineriboli

23 Jun 2025

Validação social, desejo e a intolerância ao olhar que não confirma

Comentar
Facebook
WhatsApp
LinkedIn
Twitter
Copiar URL

Quem viu também curtiu

19 de Jun de 2025

O sujeito atravessado pela história: uma leitura geracional na psicanálise

29 de Mai de 2025

Paranoia e sua lógica implacável

29 de Mai de 2025

As Cinco Lições de Psicanálise: Um Estudo Hermenêutico Para Iniciantes