Por Vaneska Cavancante |
Será que somos mesmo livres para escolher — ou apenas escolhemos entre o que já nos foi pré-definido?
Desde muito novos aprendemos que tudo que já foi ou será conquistado por nós dependerá de um investimento financeiro. Para ter uma boa educação, devemos pagar por ela; para vestirmo-nos bem, esta roupa custará caro; para termos conforto, devemos gastar com ele; para termos uma carreira, é importante investir nosso tempo livre e, assim, com esta carreira estabelecida, podemos nos especializar com bons cursos e formações que provavelmente custarão caro, para desta forma ganhar mais dinheiro e talvez conseguir um tempo livre para usufruir do valor financeiro adquirido a custos altos para garantir o feito dos sonhos.
A tarefa dos indivíduos livres era usar sua nova liberdade para encontrar o nicho apropriado e ali se acomodar e adaptar seguindo as regras de conduta identificadas como corretas e apropriadas para aquele lugar.
Bauman, 2000, p.13
Essa aparente liberdade de escolha, no entanto, esconde uma teia complexa de condicionamentos, onde o consumo, o capitalismo e as tecnologias modernas redefinem o próprio sentido de ser livres e geram cada vez mais a sensação de vazio ou fracasso por comparação.
A influência do capitalismo no comportamento social
Como sabemos, não há consenso sobre a definição do capitalismo, mas podemos entendê-lo como um sistema econômico em que os meios de produção e distribuição são de propriedade privada e com fins lucrativos, permanecendo assim atualmente.
Mudanças nesse sistema influenciam diretamente as relações entre indivíduos e objetos. Segundo Fleck (2012), o valor adquire uma existência própria, exterior às mercadorias, e de acordo com Tumolo (2005), trata-se de um movimento incessante e insaciável de ganho.
Os indivíduos passaram a consumir cada vez mais, e cada produto novo é almejado como um “sonho de consumo” — expressão utilizada por autores como Jean Baudrillard (1981) e Zygmunt Bauman (1999). O indivíduo é visto como consumidor, em constante busca de realização imediata.
A reificação das relações humanas
Por suas características principais, o capitalismo ultrapassa o domínio da economia. Uma de suas consequências é a reificação das relações sociais: os homens passam a se relacionar por meio de suas funções no sistema produtivo, trocando ganhos por mercadorias que simbolizam trabalhos alheios (Fleck, 2012).
Essas mercadorias devem seduzir visualmente seus consumidores. O empregado ideal, nesse cenário, é alguém sem vínculos ou compromissos, pronto para assumir qualquer tarefa, reajustar prioridades e abandonar as antigas — um perfil moldado pela fluidez da lógica capitalista (Bauman, 2007).
Tecnologia, trabalho e a dissolução do tempo livre
O modo de produção capitalista impulsionou o avanço tecnológico, que por sua vez alterou as relações humanas. A tecnologia, que aproxima o distante e proporcionalmente distancia o próximo. Segundo Gilberto Velho (2000), o individualismo pode tanto promover transformação quanto reforçar a desagregação social e a reificação da vida.
Apesar do discurso da otimização, os recursos como smartphones prolongam a jornada de trabalho. O espaço da vida privada se torna permeado por exigências profissionais.
Ao invés de se servirem desse advento para satisfazer seus desígnios, como que por um estranho e fatídico feitiço, os homens continuaram trabalhando tanto ou mais
Fleck, 2012, p.86
Fleck defende que tempo livre é, por definição, tempo autônomo. No entanto, o consumo impede a percepção desse tempo como espaço de liberdade. No capitalismo, até o tempo livre já está previamente cooptado.
Redes sociais como vitrine do consumo simbólico
As redes sociais atuam como extensões da lógica de mercado. Lá, experiências pessoais, relações, viagens, corpo e estilo são compartilhados como bens simbólicos desde a postagem do ‘life style’ até o registro de uma viagem 'perfeita' que só é possível com determinado poder aquisitivo. A liberdade é cada vez mais confundida com o poder de consumo — e ser visto consumindo se torna um marcador de identidade e status.
Ser livre para escolher exige competência: conhecimento, habilidades e determinação para usar tal poder
Bauman, 2007, p. 174
Consumo, liberdade e a ilusão da felicidade
Para regular a convivência, a sociedade subjetivamente acaba criando normas que restringem a liberdade individual em nome do bem coletivo. Essas limitações geram desconforto, e algumas vezes vontade de subversão a regra. Regras quebradas tornam-se também novos objetos de desejo por liberdade e assim se refaz o ciclo.
No artigo “Ser livre para consumir, ou consumir para ser livre?” (Mattos & Castro, 2008), as autoras observam:
“Ser livre passa a significar poder consumir sem restrições. Quando o consumo dessas experiências se reifica em mercadorias, estas adquirem significado que se confunde com o próprio sentido de liberdade.”
O sujeito moderno, em busca constante por sua individualidade, expressa-se por meio do consumo. A liberdade, antes uma condição básica do humano, torna-se uma escolha de mercado.
A leitura freudiana da liberdade contemporânea
A psicanálise nos ajuda a compreender como essa busca moderna por realização está vinculada a estruturas psíquicas profundas. Em Introdução ao Narcisismo (1914), Freud propõe que a libido — energia do desejo — pode ser investida no próprio ego (libido do Eu) ou em pessoas e objetos externos (libido objetal). A alternância entre essas forças é essencial para a constituição saudável do sujeito.
Na lógica atual de consumo simbólico e autorrepresentação, principalmente nas redes sociais, vemos uma intensificação do investimento na imagem idealizada de si. A curadoria das próprias experiências, o culto à performance e a constante exposição de conquistas funcionam como tentativas de moldar e alimentar o ideal de Eu — instância psíquica descrita por Freud que reúne as normas, expectativas e ideais internalizados que o sujeito tenta alcançar.
Esse movimento pode gerar um narcisismo defensivo: não como patologia, mas como modo de sobrevivência subjetiva em uma cultura que exige constante renovação e reafirmação de si mesmo. A liberdade passa a ser confundida com a capacidade de consumo, de autoaperfeiçoamento e de construção de uma identidade pública desejável. Como manter relações verdadeiras nesse contexto?
O perigo aqui está na retração da libido objetal — o desejo genuíno pelo outro — em favor de uma libido centrada no Eu e suas imagens. O sujeito moderno se aliena no espelho de seus próprios ideais, sacrificando a profundidade do vínculo pelo brilho da aparência.
A lógica final do consumo e a ansiedade moderna
O termo “indivíduo” carrega em si a noção de indivisibilidade, de consciência única. A individualidade é, portanto, parte da natureza humana. Já o individualismo, por outro lado, carrega uma carga ideológica.
Com o desenvolvimento do capitalismo e das sociedades urbanas, as pessoas passaram a tratar a felicidade como objeto de consumo. As oportunidades aumentaram, mas a sensação de liberdade nem sempre vem acompanhada de satisfação, já que exige responsabilidade.
A busca por felicidade torna-se individual, mas repleta de ansiedade. O fracasso se torna uma possibilidade constante, e o prazer precisa ser continuamente perseguido. O futuro torna-se incerto e fluido, moldado por estímulos incessantes.
Diante desse cenário, resta-nos questionar: em que medida a busca incessante por satisfação material nos afasta da verdadeira liberdade e da felicidade duradoura?
Bibliografia:
Bauman, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
Bauman, Zygmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
Baudrillard, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.
Fleck, Eliane Cristina. Consumo, Trabalho e Felicidade: a configuração da subjetividade na modernidade. São Paulo: Cortez, 2012.
Mattos, A. R.; Castro, L. R. de. Ser livre para consumir ou consumir para ser livre? Psicologia & Sociedade, 20(3), 2008.
Tumolo, Pedro. A cultura do consumo e o sujeito pós-moderno. Florianópolis: UFSC, 2005.
Velho, Gilberto. Individualismo e Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
Academia Brasileira de Letras. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, 2008.
Freud, S. (2010). Introdução ao Narcisismo. São Paulo: Companhia das Letras.
Glossário: tem caráter introdutório e busca tornar mais acessível o conteúdo discutido ao longo do artigo.
Reificação: Conceito marxista e sociológico que descreve a transformação de relações humanas em coisas, como quando tratamos pessoas como objetos ou funções.
Individualismo: Doutrina ou valor que prioriza os direitos, desejos e liberdades do indivíduo em detrimento do coletivo. Pode ter sentidos positivos (autonomia) ou negativos (isolamento).
Modernidade líquida: Conceito de Zygmunt Bauman que descreve a condição atual das relações humanas como instáveis, flexíveis e descartáveis, em contraste com estruturas sociais rígidas do passado.
Capitalismo: Sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção e na busca de lucro. Na análise crítica, afeta não apenas a economia, mas também os vínculos sociais e afetivos.
Consumo simbólico: Ideia de que consumimos não apenas bens materiais, mas também símbolos e valores (status, estilo de vida), especialmente nas sociedades de mercado.
Curadoria de si: Atitude de selecionar, editar e divulgar partes da própria vida com o objetivo de construir uma imagem pública desejada, especialmente nas redes sociais.
Vitrine digital: Expressão que descreve o modo como as redes sociais funcionam como espaços de exibição da vida pessoal, convertendo experiências em produtos visuais de consumo alheio.
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