Um retorno ao inconsciente através da letra freudiana

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Por Gi Martini |

Este artigo tem como proposta refletir sobre as argumentações sobre a concepção de inconsciente para psicanálise a partir do texto de Freud de 1912, "Algumas considerações sobre o conceito de inconsciente", associado a reflexão sobre a validade e a necessidade de se retornar aos pressupostos básicos da psicanálise.

Nesse exercício de retorno à letra freudiana, acreditamos ser necessário fazermos reflexões como: É possível delimitar a conceituação psicanalítica de inconsciente a partir deste texto? Essa argumentação teórica dá conta de diferenciar o conceito de inconsciente para a psicanálise de outras abordagens? De que forma isso é interessante para o percurso na psicanálise de aspirantes a analistas e de analistas já atuantes? E tantos outros questionamentos e reflexões que possam vir a surgir, tanto do exercício de retornar a Freud, como do retorno a este texto especificamente.

Sabemos que a formação do analista é consagrada sobre um percurso construído continuamente sobre um tripé e estamos percebendo um distanciamento de muitos estudantes de psicanálise, dos pressupostos fundamentais postulados por Freud. Tal como o fez Lacan, acreditamos precisar antes e sistematicamente, retornar à letra freudiana para suportar a adjetivação da psicanálise como contemporânea. Ele é a base de qualquer orientação psicanalítica posterior ao seu legado. Como nos coloca Joel Dör (1986), “Trata-se de situar de imediato, sem equívoco, o que é da ordem de uma prática autenticamente psicanalítica em relação a outros procedimentos de investigação do inconsciente que, embora se arvorem em psicanalíticos, parecem ter perdido completamente este sentido."

Considerando esta proposta em seu objetivo principal e em seus objetivos subjacentes, seguiremos os passos de Freud em suas elaborações, consubstanciando com outros dois autores contemporâneos a validade deste exercício.

Doze anos após a publicação do marco universal da psicanálise, o livro “A interpretação dos sonhos”, que inaugura uma ideia de inconsciente subversiva ao seu contexto histórico, autêntica e genuína, Freud continua a tecer argumentos que esclarecem e reforçam a sua proposição. De maneira ética e consistente (e até paciente), ele delimita o conceito de inconsciente psicanalítico sem desqualificar qualquer outra concepção sobre o tema.

Nesse texto, Freud tenta formalizar o inconsciente fazendo diferenciações de outras compreensões vigentes até então. Ele começa o texto dizendo que uma ideia que está presente na consciência pode desaparecer e depois retornar a partir de uma lembrança, mas não em consequência de algum fato, situação ou percepção sensorial. Ele alega que essa ideia que desapareceu, não deixou de existir, ela continuou latente até que pudesse emergir novamente.

O primeiro argumento apresenta uma oposição à ideia filosófica de que consciente e psique seriam a mesma coisa, nessa perspectiva uma ideia desaparecia e retornaria como uma nova ideia. No entanto, isso inviabilizaria a ideia de memória, fato já constatado e que não está relacionado a uma questão física, biológica, necessariamente. Ele enfatiza a diferença entre consciente e inconsciente a partir dessa concepção da memória, da lembrança, exemplificando com as experiências da sugestão pós-hipnótica, citando o trabalho do médico Dr Bernheim, onde uma pessoa colocada no estado hipnótico é sugestionada pelo médico com a tarefa de que ela, após acordar, siga a sua rotina e retorne ao consultório em um momento específico. No exemplo citado por Freud, tendo como referência as experiências do Dr Bernheim, a paciente sem ter consciência da sugestão, retorna tal como lhe foi sugerido. Ela teve um ato sem ter uma ideia consciente do porquê fez aquilo, ou seja, a ideia, a sugestão do médico, permaneceu recalcada no inconsciente e o afeto se manifestou. Ele fala que essa experiência trouxe um aprendizado sobre uma concepção dinâmica do fenômeno, em vez de uma explicação puramente descritiva. Neste argumento, é como se Freud percebesse que algo permanece vivo, latente, e ainda influenciando a consciência, os atos do sujeito, mesmo que a ideia permaneça inconsciente.

Freud fala nesse texto que, como esse pensamento, gerado pela sugestão do médico permaneceu inconsciente, à parte da ação, esse procedimento foi ao mesmo tempo eficiente e inconsciente. Ele enfatiza que essa é uma experiência de laboratório com resultado de laboratório, produzido artificialmente. Trazendo para a teoria dos fenômenos histéricos, que ele já estudava antes de 1900 e que o levaram a desenvolver a metapsicologia e depois a psicanálise, que esse exemplo distingue de maneira clara a proposta do sentido do ics para a psicanálise. Vale ressaltar que, em 1915, ele continuará a delimitar e a investigar as características e manifestações do inconsciente, refletindo sobre a possibilidade de sentimentos inconscientes, enquanto neste primeiro momento ele está centrado na questão de ideias inconscientes.

Freud pontua que a psique do paciente histérico é repleta de pensamentos que produzem efeito, que repercutem no comportamento do sujeito, que produzem sintomas, mas que são pensamentos inconscientes (“Ahh... eu não sei porque eu fiz isso”). Ele cita como exemplo, uma mulher com uma ideia inconsciente de estar grávida que começa a vomitar, ela não entende o porquê acaba sendo espectadora desse movimento, não entende a origem dele, mas que, através da psicanálise, seria possível identificar essa ideia recalcada que produz o efeito da histérica vomitar, repetindo alguma cena passada da vida.

Com a constatação a partir da sugestão praticada na hipnose, Freud defende a ideia de que um pensamento latente inconsciente não é fraco ou forte, ele pode, mesmo não chegando à consciência, ser tão forte a ponto de provocar sintomas, de provocar manifestações no sujeito, sem que ele tenha consciência do porquê aquilo está acontecendo. Isso elimina a ideia de que um pensamento vai para o inconsciente ou nele permanece, por ser fraco ou menos importante.

Na sequência, Freud identifica uma outra dimensão entre o consciente e inconsciente, chamando-a de pré-consciente, apontando que, quando se sai da ideia descritiva de inconsciente, do que deveria ser o inconsciente e sua função, se chega na dinâmica dos processos psíquicos, que justificaria porque alguns pensamentos permanecem inconscientes apesar de serem intensos e eficazes a ponto de produzir efeito. Deste modo, a ideia de pré-consciente seria uma dimensão de pensamentos latentes possíveis de chegar à consciência.

Para uma outra objeção possível, que partia da proposta do Dr Azam, que defendia a ideia da dissociação de personalidade, onde uma consciência poderia ser dividida em várias outras consciências (muito utilizado por algumas áreas da psiquiatria e da psicologia pela proposta da teoria das personalidades múltiplas e do transtorno de dissociação da personalidade). Mas Freud contesta essa ideia dizendo que além da consciência não ser uma ilusão, seria uma redundância dizer que existe uma consciência da consciência ou de uma consciência inconsciente, para ele, são duas coisas diferentes - consciente e inconsciente.

Outro argumento pontuado por Freud são os lapsos de linguagem, equívocos de memória, esquecimento de nomes, atos falhos, sempre observando estes fenômenos a partir de pessoas biologicamente saudáveis, o que justificaria a concepção de um sintoma neurótico indicativo de uma dimensão inconsciente.

Freud evolui na separação da ideia do pré-consciente do inconsciente, observando que não é uma classificação qualitativa que leva um pensamento inconsciente a ser pré-consciente. Ele faz isso focando no funcionamento e na dinâmica psíquica que movimenta um pensamento de uma dimensão para outra. Para Freud, tanto pensamentos pré-conscientes quanto inconscientes podem produzir efeitos, mas o primeiro pode ser levado à consciência e o segundo não, pelo menos não sem demandar um grande e laborioso esforço, dando conta de superar algumas defesas para que isso pudesse acontecer, chamando isso de resistência.

Segundo ele, a teoria mais provável possível de formular a partir dessas elaborações, desse saber, é que o inconsciente é uma fase regular e inevitável dos processos que fundamentam nossa atividade psíquica. Todo ato psíquico começa inconsciente e pode permanecer assim ou desenvolver-se rumo à consciência, dependendo das resistências que esse ato, ou melhor, a ideia relacionada a esse ato, vai encontrar pelo caminho. Ele explica que essa distinção entre atividade pré-consciente e inconsciente não é primária, mas que ela se produz apenas depois que a defesa entra em jogo. Antes das defesas não haveria uma diferenciação entre esses pensamentos.

De maneira muito eficiente, ele explica a dinâmica psíquica, o movimento desses pensamentos, com o exemplo do processo da fotografia (positivo e negativo). Seria o mesmo com a atividade consciente e inconsciente. O primeiro estágio da fotografia é o negativo, depois do negativo, os que superarem a prova, que saírem adequados e registrarem bem a captura da luz, são admitidos no processo positivo. Nessa analogia, o negativo seria o inconsciente e o positivo o consciente.

Outro argumento apontado por Freud para diferenciar o inconsciente de outras abordagens é através das lembranças que pessoas normais relatam de um sonho, dos conteúdos latentes e conteúdos manifestos. De maneira breve ele explica que, uma série de pensamentos é despertada por alguma atividade mental do dia e ao dormir, esse resto encontra a possibilidade de se ligar a desejos inconscientes, que podem estar ali desde a infância e que são normalmente reprimidos e excluídos da consciência, emprestando deles sua força para gerar uma dinâmica capaz de fazer, através do processo de condensação e deslocamento, a junção dessas vivências do dia com os desejos recalcados. Nesse processo, forma-se uma outra coisa que se manifestará através do sonho, que pode ser lembrada no dia seguinte e, em análise, devidamente decifrada. Desta forma, três coisas aconteceram na formação do sonho: os pensamentos experimentaram uma transformação, um disfarce e uma distorção que representa a participação do aliado inconsciente; os pensamentos conseguiram ocupar a consciência num momento em que ela não deveria ser acessível, em que ela deveria resistir, mas que, justamente por causa do deslocamento e da condensação, se tornaram conscientes, ou seja, nesse processo um pedaço do inconsciente emerge na consciência, o que, sem estar dormindo, não seria possível; através da análise desses conteúdos manifestos do sonho é possível construir uma parte de como esse fenômeno dinâmico se sucedeu, como isso aconteceu, para que algumas coisas chegassem à consciência. Os pensamentos oníricos latentes, aqueles não lembrados, não vão se diferenciar dos produtos de uma atividade psíquica consciente habitual, e por isso, merecem o nome de pré-conscientes. Também, que podem ter sido em algum momento, em algum instante, pensamentos conscientes ao longo da vida. Através dessas argumentações, Freud afirma que o inconsciente dá indícios de participar da natureza de certa categoria psíquica, dentro de um sistema dinâmico que merece a nossa atenção.

Freud segue com suas investigações sobre o inconsciente reforçando seus argumentos diante críticas vindas de seus colegas médicos, filósofos e de outras áreas de estudo até que, em 1915, ele mesmo conclui que, admitir esse sistema psíquico fez com que a psicanálise se distanciasse ainda mais da psicologia descritiva da consciência, através da descoberta de uma nova maneira de perceber o problema da psique humana e de um novo conteúdo. Já que, até aquele momento, a diferença principal entre a psicanálise e a psicologia se dava pela concepção dinâmica dos processos anímicos, agora a questão da topologia também deve ser considerada.

Sem a intenção de avançar para o retorno de Lacan a Freud, podemos perceber que,

Esta referência freudiana da investigação do inconsciente está marcada, desde o início, por uma certa "inscrição" psíquica que faz com que estejamos seguros de que não se trata de uma entidade abstrata ou metafísica, e que tampouco nos remete ao registro de uma entidade biológica ou de algum substrato psíquico mensurável e quantificável. Os processos psíquicos inconscientes circunscritos por Freud encontram-se, no princípio mesmo de sua descoberta, submetidos à dimensão psíquica da linguagem e aos pontos de apoio nos quais esta dimensão se sustenta através da transferência

Joel Dor, 1989, p.11.

Ao longo da leitura minuciosa do texto, "Algumas observações sobre o conceito de inconsciente" e sustentados pela ideia da necessidade de retornar aos pressupostos básicos freudianos em qualquer etapa do percurso de construção do analista, mais do que constatar a suficiência argumentativa de Freud, percebemos como é crescente a quantidade de instituições que se dizem psicanalíticas e que se distanciam do campo investigativo psicanalítico em diferentes aspectos. Seja na transformação dessa práxis em um produto rentável, seja na banalização do arcabouço teórico que constitui a psicanálise, ou ainda naquilo que Bruce Fink aponta em seu livro, "Introdução clínica à Freud", como sendo uma espécie de distanciamento do ensino dos métodos básicos desenvolvidos por Freud para se acessar o inconsciente, privilegiando maneiras indiretas de abordar o recalcado sem se preocupar como todos os movimentos que envolvem o inconsciente acontecem, focando nas resistências, defesas e obstáculos para se chegar ao inconsciente, como se esses fossem o objetivo de uma análise. 

1. Bibliografia

Dor, Joel. Introdução a leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem.- Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

FINK, Bruce. Introdução clínica à Freud, técnicas para a prática cotidiana. Ed Zahar, RJ 2024. 

FREUD, Sigmund. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia : (“O caso Schreber”) : artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913) / Sigmund Freud ; tradução e notas Paulo César de Souza. — São Paulo : Companhia das Letras, 2010.

FREUD, Sigmund. Obras completas - Introdução ao narcisismo, Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 

 Texto produzido no Grupo de Estudos Sociedade de Terças, Turma I

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25 Mai 2025

Um retorno ao inconsciente através da letra freudiana

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