Por Karine Riboli |
Você já saiu de um consultório médico sentindo que sua dor foi ignorada? Que seu corpo, seu sofrimento, foram reduzidos a um “problema emocional” ou, pior, a algo que simplesmente não existe?
Isso não é um acidente, mas um sintoma estrutural. O que chamamos de gaslighting médico é a negação brutal da experiência subjetiva do sofrimento, o médico que desacredita, que transforma sua dor em dúvida, que apaga sua voz.
Freud já afirmava que é pela palavra que o paciente pode transferir seu sofrimento e buscar sua transformação, pois onde a palavra falta, o sofrimento se faz silêncio opressivo. Mas e quando essa palavra é recebida com silêncio, desdém, dúvida?
Parafraseando Lacan, o sujeito só se constitui e se reconhece no desejo do Outro; é no reconhecimento desse olhar que ele se afirma como existência. Negar esse reconhecimento configura uma forma de violência contra o sujeito, lançando-o no vazio do não-ser.
No final do século XIX, mulheres diagnosticadas como histéricas foram vítimas emblemáticas desse apagamento. Suas dores reais eram tratadas como fingimento, seus corpos negados sob o peso de um saber médico que se recusava a admitir o incompreensível.
Foi justamente contra essa lógica que a psicanálise se ergueu, rompendo o silêncio ao ousar escutar onde só havia desdém, atribuindo voz às mulheres e instituindo a associação livre como resistência contra esse silêncio que grita.
No século XXI, essa violência persiste, mas ganha contornos mais sutis e por vezes revestidos de indiferença. Pesquisas revelam que mais de 94% das pessoas relataram sentir que seus sintomas foram ignorados ou desacreditados por um médico. Esse número não é mera estatística: é a reverberação de um pacto simbólico rompido entre médico e paciente, um acordo implícito de escuta e reconhecimento que, quando quebrado, ressoa dolorosamente no corpo e na psique, especialmente quando o silêncio do médico fala mais alto que a voz do paciente.
Você já percebeu como, às vezes, sua dor é minimizada, rotulada como “coisa da cabeça”, ignorada mesmo diante da insistência? Como se, para ser levado a sério, fosse necessário carregar o fardo da dúvida sobre si mesmo, a obrigação de provar uma dor que escapa à lógica?
O silêncio do médico, o olhar que desvia, o gesto que interrompe sua narrativa, tudo isso ressoa como um apagamento, uma exclusão simbólica. Sair do consultório e sentir que perdeu a própria voz, que o corpo que fala virou um enigma impossível, é o sinal mais cruel desse mecanismo.
No consultório, o médico ocupa o lugar do sujeito-suposto-saber, aquele a quem confiamos não apenas nosso corpo, mas a verdade sobre ele. Quando o Outro nega nossa narrativa, rompe-se a sustentação simbólica que permite ao sujeito existir. A dor deixa de ser apenas física para transformar-se em um vazio corrosivo do ser.
Você, que talvez já tenha sentido o peso dessa invalidação, sabe que ela não é mera frustração. É uma ferida narcísica profunda que, questiona a própria existência do sujeito. (Freud, 1914)
Mas na clínica psicanalítica esse vazio pode ser enfrentado e atravessado.
Ali, onde a medicina tradicional falha por buscar respostas objetivas e prontas, encontra-se o acolhimento da singularidade do sofrimento, uma escuta que não tenta preencher o vazio com explicações fáceis, mas que se deixa atravessar pelo relato do sujeito.
A associação livre, esse ato inaugural fundante da psicanálise, permite que o analisante se aproprie de sua palavra, reencontre seu lugar no discurso e redescubra seu desejo.
É neste encontro que o silêncio opressor pode ser rompido e a dor encontra sentido, não pela eliminação do sintoma, mas pela ressignificação da experiência subjetiva.
A psicanálise oferece um espaço ético e simbólico onde a verdade do sujeito não é negada ou diminuída, onde o silêncio se torna fala e o apagamento se transforma em reconhecimento.
Quando a medicina silencia a dor, quebra-se um pacto fundamental, aquele que deveria garantir cuidado, respeito e reconhecimento. A psicanálise nasce para ocupar esse vazio, para restituir a escuta, a palavra e, sobretudo, o sujeito.
E você? Já passou por essa invalidação? Conte-nos o seu relato, ele pode ajudar outras pessoas a entender que não estão sozinhas.
Se hoje você fosse verdadeiramente ouvido(a), que verdade sua dor teria coragem de revelar?
Referências
- Freud, S., & Breuer, J. (1895). Estudos sobre a Histeria.
- Freud, S. (1914). Introdução ao Narcisismo.
- Lacan, J. (1966). Escritos.
- ECRI. Medical gaslighting tops list of highest patient safety risks (2025), com base em pesquisa de 2023. Association of Health Care Journalists