Por Karine Riboli |
Entre estrutura clínica e espelho social
Há momentos em que tudo parece se dirigir a nós. Um gesto, uma pausa, uma frase dita ao acaso. Como se o mundo nos observasse por frestas invisíveis, dizendo mais do que de fato diz. O paranoico não apenas sente isso, ele tem certeza.
A paranoia se sustenta numa certeza que fascina e assusta: a de ter acesso a uma verdade reveladora, capaz de organizar o caos. Não se trata apenas de um saber qualquer, mas de um saber que repara, delata, salva.
Um saber que se impõe não apenas como defesa, mas como missão. E talvez o mais inquietante seja o quanto esse tipo de certeza nos ronda. Quem nunca se sentiu tentado a acreditar que entendeu, enfim, o que os outros não veem?
Freud, ainda em "Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranoia" (1911), mais conhecido como o caso Schreber, já apontava que os delírios paranoicos não são produtos de uma ruptura absoluta com a lógica, pelo contrário, obedecem a uma coerência interna rigorosa. A psicose constrói uma narrativa para recompor um real insuportável. E é exatamente nesse ponto que a paranoia deixa de ser um fenômeno “deles” e nos envolve também. Quantas vezes organizamos o nosso sofrimento em torno de uma narrativa tão fechada em si que exclui qualquer alteridade?
Lacan, por sua vez, amplia a leitura ao situar a paranoia como uma estrutura clínica, ou seja, uma forma de relação com o significante e com o Outro, regida pela forclusão do Nome-do-Pai, termo que ele formaliza em seu "Seminário 3: As Psicoses" (1955-56, p.370). Na paranoia, o que está forcluído retorna no real sob a forma de significação delirante. Mas, para além da psicose enquanto estrutura, Lacan nos obriga a olhar para aquilo que essa lógica revela sobre a constituição de qualquer subjetividade: a impossibilidade de permanecer ileso diante da linguagem.
A linguagem não apenas representa, ela fere. Ao nos atravessar, ela instala um corte. E é desse corte que emerge a angústia. A angústia de ser dito pelo Outro, sem que possamos controlar o que está sendo dito.
Um saber inconsciente que nos escapa, mas que nos inclui. Um olhar que nos atravessa, sem que possamos retribuir na mesma medida. Não é à toa que Lacan afirma, no "Seminário 10: A Angústia" (1962-63, p. 88), que a angústia não engana — pois ela surge exatamente quando o sujeito se vê incluído demais no desejo do Outro, capturado por um sentido que ele não domina.
Nesse cenário, o paranoico nos revela algo profundo: uma resposta angustiada à perda de soberania sobre o próprio saber. Sua certeza funciona como antídoto contra a exclusão simbólica. A paranoia não é apenas medo de ser perseguido, mas resistência feroz a ser interpretado sem consentimento.
Se a modernidade nos deixou como herança o "ideal da autonomia", ela também nos lançou numa cena em que tudo é interpretável, onde cada olhar parece portador de um julgamento implícito. A subjetividade contemporânea se vê atravessada por discursos que a classificam, rotulam, diagnosticam, cancelam — e, muitas vezes, silenciam. Não surpreende que o saber venha a ser experimentado, então, como ameaça.
Aqui a hermenêutica encontra seu lugar: não como busca por um sentido último, mas como experiência do múltiplo. Interpretar é sempre lidar com o inesgotável da linguagem. Já a paranoia, por sua vez, fecha. Reage à ambiguidade com rigidez, transforma o talvez em certeza. Onde a linguagem oferece abertura, o delírio busca fechamento.
E não estamos todos, em alguma medida, tentados por essa sedução?
A paranoia cotidiana se insinua em pequenas cenas: quando toda crítica é ataque, toda diferença é ameaça, e todo Outro é visto como inimigo potencial. Ela opera como "uma epistemologia da desconfiança absoluta”, onde o sentido já está dado, e toda escuta é apenas confirmação do que se “sabia” desde o início.
Mas o que acontece com o nosso desejo quando o Outro se torna, irremediavelmente, uma ameaça?
E mais: o que há de nós nesse espelho paranoico que recusamos enxergar?
Bibliografia
FREUD, Sigmund. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia : (“O caso Schreber”) : artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913) / Sigmund Freud ; tradução e notas Paulo César de Souza. — São Paulo : Companhia das Letras, 2010.
Lacan, Jacques O Seminário, livro 3: As psicoses Editora: Zahar; 2ª edição (1 julho 1985)
Lacan, Jacques O Seminário, livro 10: A angústia Editora: Zahar; 1ª edição (26 outubro 2005)