25/05/2025 às 21:25 Artigo Acadêmico

O Pensamento de Lev Vigotski: Desenvolvimento Humano, Linguagem e Transformação Social

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Por Ariane Salomão |

Em um momento histórico em que a ciência da infância ainda engatinhava, Lev Semionovich Vigotski propôs uma abordagem para o estudo do desenvolvimento humano: a pedologia. Mais do que uma junção entre Psicologia e Biologia, a pedologia visava compreender a criança em sua totalidade — integrando fatores sociais, históricos e culturais à análise dos processos de formação subjetiva.

Porém, apesar de hoje ser considerado um dos maiores nomes da Psicologia do Desenvolvimento, Lev Vigotski teve suas ideias silenciadas por décadas em seu próprio país. Depois de sua morte, em 1934, suas teorias foram censuradas pela União Soviética, principalmente durante o governo de Josef Stalin. Isso porque seu pensamento — centrado na linguagem, na cultura e na construção subjetiva do ser humano — era visto como perigoso por não seguir à risca, de forma dogmática, o materialismo dialético imposto pelo regime.

Na prática, Vigotski foi acusado de idealista. Seus textos foram banidos das universidades e desapareceram da produção científica soviética por quase vinte anos. Foi só depois da morte de Stalin, com a abertura promovida por Nikita Khrushchov, que seus escritos começaram a ser redescobertos — primeiro dentro da própria Rússia e depois em países do Ocidente, onde suas ideias ganharam força nos anos 60 e 70. No Brasil, segundo Dainez e Smolka (2014):

“As ideias do russo Lev S. Vigotski chegaram ao Brasil na década de 1980. A sua primeira obra disponível no nosso país foi A formação social da mente, em 1984, e, mais tarde, em 1988, foi publicada a coletânea Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem

Textos escolhidos de Vigotski, Luria e Leontiev

Esse silêncio forçado ajuda a entender por que boa parte da obra de Vigotski só foi publicada muito tempo depois de escrita e por que ele acabou sendo mais reconhecido fora da União Soviética do que dentro dela.

Atualmente, diante dos desafios impostos por uma sociedade marcada pela desigualdade de acesso ao conhecimento e pela fragmentação das ciências humanas, resgatar o pensamento vigotskiano e sua proposta interdisciplinar nos obriga a repensar os rumos da educação e do desenvolvimento infantil. Como a pedologia pode dialogar com as exigências do presente? Quais limites ainda persistem em sua aplicação? E por que, apesar de sua importância, ela segue à margem dos currículos escolares e acadêmicos?

2.1 Vigotski e a Pedologia como Ciência do Desenvolvimento da Infância

Lev Semenovich Vigotski, judeu, nascido em 17 de novembro de 1896, em Orsha, na pequena cidade de Bielo-Rússia, cresceu em Gomel com seus pais e sete irmãos. Desde pequeno foi estimulado intelectualmente e, segundo pesquisadores de sua vida, Lev era um leitor árduo e estudante adiantado. Formou-se em Direito pela Universidade de Moscou em 1918 e estudou, simultaneamente, História e Literatura na Universidade Popular de Shanyavskii.

Após a conclusão de seus estudos, retornou à cidade de Gomel, onde atuou com crítica literária e ministrava palestras sobre literatura e Psicologia. Fundou uma editora, publicou uma revista literária e estabeleceu um laboratório de Psicologia.

Mesmo com formação inicial em Direito, destacou-se por suas análises sobre o significado histórico e psicológico das obras de arte. Escreveu Psicologia da Arte entre 1924 e 1926. Estudou Gestalt, Psicanálise, Behaviorismo e dialogou com as ideias de Jean Piaget. Introduziu a teoria histórico-cultural do desenvolvimento, entendendo que o desenvolvimento humano é inseparável do contexto social. Para ele, a linguagem é ferramenta central na construção do pensamento.

A pedologia, portanto, não era apenas um campo técnico, mas um projeto epistemológico e ético, que buscava captar os múltiplos fatores que incidem sobre o desenvolvimento.

Na pedagogia, pode-se estudar a educação da criança, o que, até certo grau, é ciência da criança. Pode-se estudar a psicologia da criança e isso também será, em certo grau, ciência da criança. Por isso, desde o início, é preciso estabelecer exatamente o que da criança é o objeto do estudo pedológico. Portanto, seria mais preciso dizer que a pedologia é a ciência do desenvolvimento da criança. O desenvolvimento da criança é o objeto direto e imediato da nossa ciência

Vigotski, 2018, p.18

A Pedologia se propõe a conhecer para intervir, estudando o desenvolvimento possível da criança, suas zonas de desenvolvimento real e proximal, com o intuito de promover seu avanço.

2.2 A Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP)

A Zona de Desenvolvimento Proximal reformula o entendimento do potencial de aprendizagem da criança:

[...] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes

Vigotski, 2007, p 97

A ZDP indica que o que uma criança pode fazer com a ajuda de um adulto ou de um par mais experiente revela mais sobre suas possibilidades do que aquilo que ela consegue realizar sozinha. Essa ideia desestabiliza concepções pedagógicas tradicionais, que se baseiam em estágios fixos de desenvolvimento, abrindo espaço a questões sobre qual o papel da mediação nas trajetórias de aprendizagem e como reconhecer e ampliar as ZDPs no cotidiano escolar, evidenciando a importância da mediação social no processo de aprendizagem.

Esse conceito tem implicações práticas profundas para a educação, pois sugere que os educadores devem ser capazes de identificar a zona de desenvolvimento de seus alunos e, a partir disso, proporcionar as condições necessárias para que eles avancem. 

  Figura 1 – Zona de Desenvolvimento Proximal

Fonte: Site Reaprendentia, 2021

2.3 O Materialismo Histórico e Dialético (MHD)

Derivado do pensamento marxista, o MHD é um conceito central que se fundamenta a Psicologia Histórico-Cultural e surge em oposição às abordagens naturalizantes ou idealistas, considerando que o ser humano se constitui, historicamente, por meio de suas relações com o mundo material e com os outros indivíduos. Ao partir das condições concretas da vida material, Marx (1818–1883) compreende o ser humano como um sujeito histórico, que se constitui nas e pelas relações sociais. A consciência, nesse sentido, não é algo dado ou inato, mas uma construção processual que emerge da experiência coletiva e da prática social, afirmando que:

O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.

Marx. 2008, p.47.

Vigotski retoma essa perspectiva ao afirmar que as funções psicológicas superiores não surgem espontaneamente no sujeito individual, mas são construídas socialmente e internalizadas ao longo do desenvolvimento. Isso significa que o desenvolvimento psicológico não é produto exclusivo de processos biológicos, tampouco resultado de forças intrapsíquicas isoladas: ele é produzido nas relações sociais, nas práticas culturais e no contexto histórico, compreendendo que o psiquismo humano se desenvolve a partir da atividade prática e social do sujeito.

As funções psicológicas superiores — como atenção voluntária, memória lógica, pensamento abstrato e linguagem interior — não surgem espontaneamente: são resultado de um processo de mediação realizado através de instrumentos e signos, construídos socialmente e apropriados historicamente pelos indivíduos. Dessa forma, o sujeito não é passivo, mas age sobre a realidade e é transformado por ela, num movimento dialético constante entre o individual e o social. Vigotski define como lei geral do desenvolvimento humano o seguinte pensamento:

[...] primeiro um meio de influência sobre outros, depois – sobre si. Neste sentido, todo o desenvolvimento cultural passa por 3 estágios: em si, para outros, para si.

Vigotski, 2000a, p.24.

Esse posicionamento rompe com qualquer visão estanque ou biologizante do desenvolvimento. Para o teórico, é preciso investigar os processos em sua gênese e em sua dinâmica histórica, analisando as contradições que impulsionam o movimento do desenvolvimento humano.

Surge, assim, uma importante pergunta para o campo educacional: como compreender os processos de ensino e aprendizagem como práticas sociais historicamente determinadas, e não como simples transmissões de conteúdos?

2.4 A Linguagem e a Formação do Pensamento

Outro ponto central no pensamento de Vigotski é a ideia de que a linguagem é fundamental para a construção do pensamento. A linguagem não apenas permite a comunicação, mas também organiza e estrutura o pensamento. Esse conceito desafiou a visão predominante de que o pensamento é algo independente da linguagem. Para ele o pensamento e a linguagem estão intimamente relacionados, sendo que a primeira se desenvolve a partir da segunda.

Essa teoria levanta uma importante questão: como as práticas educativas podem ser estruturadas para promover uma relação mais estreita entre linguagem e pensamento nos alunos? A implicação prática desse pensamento é que as crianças devem ser incentivadas a pensar de forma verbalizada, discutindo ideias e conceitos para que possam formar uma compreensão mais profunda do mundo ao seu redor.

2.5 Interdisciplinaridade e Desenvolvimento

Um dos méritos da pedologia está em sua proposta interdisciplinar. Ao articular Psicologia, pedagogia, biologia, sociologia e filosofia, Vigotski antecipou debates contemporâneos sobre a complexidade do desenvolvimento humano. A infância, em sua perspectiva, não é um fenômeno a ser medido, mas compreendido em sua historicidade. A construção do sujeito é um processo dinâmico, em que linguagem, cultura e relações sociais são centrais.

Esse entendimento amplia o campo de atuação das políticas públicas e das práticas educacionais. Quando a escola ignora os contextos sociais e culturais dos alunos, ela reforça desigualdades em vez de combatê-las. A pergunta que Vigotski nos lança permanece viva: que tipo de desenvolvimento queremos promover, e para quem?

3. Reflexões e Problematizações

Retomar a pedologia vigotskiana não significa restaurar um modelo histórico, mas atualizar suas perguntas fundadoras. Como compreender a infância em sua complexidade? Como articular teoria e prática na formação docente? Como resistir à naturalização das desigualdades e promover o desenvolvimento pleno de todas as crianças?

São reflexões que devemos enfatizar, e provocar, independente da época vivida, pois Vigotski nos convida a pensar o desenvolvimento humano como um processo relacional, situado e mediado. A pedologia, nesse sentido, não é apenas uma ciência da criança, mas uma ciência do possível. Cabe a nós, educadores, pesquisadores e sujeitos históricos, assumir o compromisso de transformar esse possível em realidade.

4. Conclusão

Revisitar o pensamento de Lev Vigotski à luz do Materialismo Histórico Dialético nos convoca a repensar o papel da educação, da Psicologia e da cultura na constituição do sujeito contemporâneo. Suas ideias permanecem inquietantemente atuais em um cenário em que desigualdades sociais, avanços tecnológicos e transformações nos modos de vida exigem uma compreensão mais crítica e situada do desenvolvimento humano.

Afinal, quais práticas escolares hoje, de fato, consideram a historicidade do sujeito? Em que medida os processos educativos contemporâneos reconhecem e valorizam a mediação como princípio central na formação de crianças, jovens e adultos? Como as tecnologias digitais — que mediam novas formas de linguagem, sociabilidade e cognição — podem ser integradas de maneira dialética, crítica e formativa nas práticas pedagógicas, saindo do modelo opinativo e indo para campos teóricos e práticos?

Ao refletirmos sobre as Zonas de Desenvolvimento Proximal no contexto atual, somos desafiados a identificar potencialidades que ainda não se manifestaram plenamente, tanto em nível individual quanto coletivo. Isso implica assumir um compromisso ético e político com a transformação das condições materiais que limitam o desenvolvimento de tantos sujeitos historicamente marginalizados.

Assim, a obra de Vigotski não se encerra em seu tempo. Ela se abre, constantemente, como convite: a educadores, psicólogos, pesquisadores e deve ir para campos de discussões político-sociais, para que olhemos criticamente para as práticas que promovemos e para os mundos que ajudamos a construir. A pergunta que fica é: estamos criando espaços que potencializam o desenvolvimento humano ou apenas reforçando formas históricas de exclusão e silenciamento, que se modernizam conforme novos meios surgem ao invés de serem excluídas? E como faremos para que teorias, como de Vigotski, se tornem práxis sociais?

BIBLIOGRAFIA

MARX, Karl. Contribuição à crítica da Economia Política. Tradução e introdução de Florestan Fernandes. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008. 288 p. Disponível em: https://gpect.files.wordpress.com/2013/11/contribuicao_a_critica_da_economia_politica.pdf. Acesso em: 06 de mai. de 2025

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Artigo reorganizado para mídia online com a finalidade de conforto de leitura, sem apagar a estrutura textual e linguagem original.

Originalmente escrito para entrega à Ma. Profª. Mariana P. Gentilli para fins de pontuação na matéria de Desenvolvimento Humano I.

Conheça a Ariane através do seu Instagram @arianesalomao.psicanalista

25 Mai 2025

O Pensamento de Lev Vigotski: Desenvolvimento Humano, Linguagem e Transformação Social

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